INSTRUMENTAL
BRASILEIRAS
Por Carô Murgel[1]
Em 1928, Virgínia Woolf escrevia um de seus mais potentes textos, o livro Um Teto Todo Seu, publicado em 1929, explicitando a dificuldade de se saber quem eram as mulheres nas artes. Mesmo com o apagamento imposto pelo patriarcado, naquele momento já existiam muitas escritoras. As pintoras eram conhecidas em menor número e as musicistas tinham que mostrar um grande talento para terem algum reconhecimento – mas, mesmo assim, as críticas eram incessantes:
[...] havia uma enorme maioria de opiniões masculinas no sentido de que nada se poderia esperar das mulheres intelectualmente. Mesmo que seu pai não lhe lesse em voz alta essas opiniões, qualquer moça poderia lê-las por si mesma; e a leitura, mesmo no século XIX, deve ter-lhes reduzido a vitalidade e influído profundamente em seu trabalho. Haveria sempre aquela afirmativa — você não pode fazer isto, você é incapaz de fazer aquilo — contra a qual protestar e a ser superada. Provavelmente, para uma romancista, esse germe já não surte grande efeito, pois tem havido mulheres romancistas de mérito. Mas, para as pintoras, isso deve trazer ainda algum tormento; e para as musicistas, imagino, é ainda hoje ativo e venenoso ao extremo. A mulher que compõe música situa-se no que foi o lugar da atriz na época de Shakespeare. Nick Greene [..] dissera que uma mulher representando lembrava-lhe um cachorro dançando. Johnson repetiu essa frase duzentos anos depois a propósito das pregadoras de saias. E aqui, disse eu abrindo um livro sobre música, temos as mesmas palavras novamente usadas neste ano da graça de 1928, sobre mulheres que tentam escrever música[2]. “Sobre a srta. Germaine Tailleferre[3], pode-se apenas repetir a máxima do dr. Johnson sobre as mulheres pregadoras, transposta em termos de música: 'Senhor, a composição de uma mulher é como o andar de um cachorro sobre as patas traseiras. Não é bem-feita, mas já surpreende constatar-se que de qualquer modo foi feita’." Com que exatidão a história se repete... Assim, concluí, [...] é bastante evidente que, mesmo no século XIX, a mulher não era incentivada a ser artista. Pelo contrário, era tratada com arrogância, esbofeteada, submetida a sermões e admoestada. Sua mente deve ter sofrido tensões, e sua vitalidade foi reduzida pela necessidade de opor-se a isso, de desmentir aquilo. Pois aí, mais uma vez, entramos no âmbito daquele complexo masculino muito interessante e obscuro, [...] daquele desejo arraigado não tanto de que ela seja inferior, mas de que ele seja superior, o que o coloca, para onde quer que se olhe, não apenas na dianteira das artes, mas barrando também o caminho da política [...] A história da oposição dos homens à emancipação das mulheres talvez seja mais interessante do que a história da própria emancipação. Seria possível escrever um livro divertido sobre isso, caso alguma jovem aluna [...] colhesse exemplos e deduzisse uma teoria — mas ela precisaria de luvas grossas nas mãos e de barras de ouro maciço a protegê-la.[4]
Apesar de sabermos que o século XIX é marcado por interdições às mulheres – lembrando que nesse período e até meados do XIX, uma mulher pública era vista como uma prostituta e um homem público como alguém de muito respeito – foi também a moral burguesa do período que colocou o aprendizado de instrumentos, em especial o piano, como desejável para as mulheres, sempre com os limites da execução apenas no espaço privado, claro. Mas sabemos, também, de algumas mulheres que compunham e disputavam o espaço público com seus pares – notoriamente Chiquinha Gonzaga.
O senso comum costuma traçar um espaço de 90 anos de “vazio” entre o início da produção musical de Chiquinha Gonzaga (1860) e o das compositoras dos anos de 1950, em especial Maysa e Dolores Duran – mas havia muitas outras compositoras e instrumentistas, incluindo anteriores à Chiquinha.
Falo da composição para apresentar um trabalho de visibilização das instrumentistas – mas os dois fazeres são também intimamente ligados. Pois as mulheres compunham e tocavam instrumentos desde os marcos iniciais das civilizações conhecidas e adotadas como “precursoras” do mundo e da história ocidental, bem antes da moral burguesa impeditiva existir.
[1] Carô Murgel é historiadora e pesquisadora colaboradora do Departamento de História do IFCH/Unicamp.
[2] Virginia Woolf se refere ao crítico musical Cecil Gray. (N.A.)
[3] Germaine Tailleferre (1892-1983), pianista e compositora, foi a única integrante mulher do importante grupo de compositores modernistas franceses Le Six, formado por Arthur Honegger, Darius Milhaud, Francis Poulenc, Georges Auric, Germaine Tailleferre e Louis Durey. (N.A.)
[4] WOOLF, Virginia. Um Teto Todo Seu. São Paulo: Círculo do Livro, 1990, pp. 67-69.
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